Foto: Fernando Oliveira - 2013 |
(Obs: Texto publicado com data retroativa à 31 de julho de 2014)
Há um ano e seis meses, resolvi recomeçar a
vida. Balzaquiana, decidi cortar todo o cabelo e me conhecer e
reconhecer como mulher negra. Foi resultado de longos estudos sobre identidade,
história, negritude. Seria um gran finale de aceitação.
Foram meses lendo sobre textura, tratamentos,
cronogramas capilares etc. Era um mundo que eu não fazia ideia de que existia.
Primeiro entrave: como escolher os tratamentos/produtos adequados ao meu cabelo
se eu não conhecia meu cabelo? Nas leituras, descobri que existem cabelos
de 2A até 4C. Mas qual era o meu tipo? Eu
não fazia ideia. Eu precisava saber qual era pra saber como criar meu cronograma capilar e aprender a
hidratar, nutrir e reconstruir a massa do cabelo para mantê-lo saudável. E aí,
diante da minha decisão, ouvi duas perguntas: “Isso é caro? Vai dar mais
trabalho?” Oras! Caras e trabalhosas eram as escovas progressivas para alisar
os cabelos!
Alisei os cabelos pela primeira vez – ao que
me lembro – lá pelos 8 ou 9 anos, com a então famosa e maldita “touca de
gesso”. Lembro de ter me sentido absolutamente ridícula em ficar com cabeça
“engessada” por mais de uma hora. Era uma coisa fedida, que deixou meu couro
cabeludo vermelho e sensível durante uns dias. Desde então, a cada três meses,
lá estava eu de volta, para “domar” aqueles insistentes cabelos que me
tiravam o sossego – e a beleza.
Foto de Arquivo Familiar |
Beleza: tá aí uma coisa que “nunca
tive”. Sempre me achei muito feia. Magra, “cabelo duro”, espinhas,
“moreninha”. Tudo pra ser preterida. E assim foi por muito tempo. Lembro com
clareza de quando chegou a época da formatura da oitava série e precisavam ser
formados pares para a cerimônia (não vou entrar no mérito dessa convenção
social machista agora). Lembro que eu tinha um grupo de amigos, e nenhum deles quis
entrar comigo na tal cerimônia. Ouvi um deles falando: “prefiro a Eduarda. Mais
bonita”. Eduarda, com seus longuíssimos cabelos lisos e branquinha, era mais
bonita. Claro. Hoje entendo a beleza de Eduarda. E a minha. Lembro ainda uma
outra vez em que eu estava varrendo a varanda de casa e uma pessoa, procurando
por minha mãe – que é branca e viúva de um negro – perguntou se “a dona da casa
estava”. Cada qual no seu lugar, certo? Errado.
ANTES “MORENINHA”. AGORA, NEGRA E…. GAY?
Pixaim, palha de aço, Bombril, vassoura, leoa,
sarará, cabelo duro, cabelo ruim, piaçava. Ouvi isso a vida
inteira, mesmo depois de alisar o cabelo, já que ele, mesmo alisado, não tinha
a aparência adequada, de naturalmente liso. Mas, aleluia, um dia chegou o dia
do Big Chop (“BC” para os
íntimos), a hora de cortar tudo. Eu estava tão ansiosa que não aguentaria
passar pela transição, forma como muitas meninas
conseguem manter o cabelo alisado até ter o tamanho suficiente de cabelo
natural pra não precisar cortar “Joãozinho”.
Foto: Anderson França - 2012
|
Pois eu cortei “Joãozinho”. E ganhei mais
um rótulo imediatamente. Passei a receber olhares, questionamentos sobre minha
sexualidade e até vivenciei a homofobia, quando um homem bradou: “isso é uma
pouca vergonha! É culpa do Lula e do politicamente correto a gente ter que ver
isso!”. Eu estava tomando um suco com uma amiga – também de cabelos curtos –
numa lanchonete perto de casa. Peguei uma cadeira para “educa-lo”, mas fui
contida. Melhor assim.
ACEITAÇÃO: UM ATO POLÍTICO.
“Será que você consegue um namorado
agora, com esse cabelo?”, “será que consegue um emprego?”, “sua criança vai
sofrer bullying na escola?”. Não vou dizer que não pensei
nestas coisas. Mas vou dizer que pensei mais nas respostas. Eu gostaria de me
relacionar com alguém que me avaliasse e me desejasse de acordo com meu cabelo?
Eu gostaria de trabalhar num lugar em que a capacidade das pessoas fosse medida
pelo cabelo? Eu matricularia minha criança em uma escola que mandasse cortar o cabelo,
como um uniforme? Eu me submeteria ao racismo? Eu realmente quero me retirar
destes debates e me recolher ou quero lutar com as pessoas pela garantia de
direitos de todos e pela mudança desse cenário medíocre e criminoso?
As respostas a essas perguntas são políticas.
Somos seres políticos. Existir é um ato político. Existir como mulher negra é
um duplo exercício de luta pela cidadania e plenitude de direitos. Deixar seu
cabelo pro alto, no lugar onde você decidiu que ele deve estar, é uma afronta.
Uma afronta à “ordem natural das coisas”, onde o negro tem seu lugar muito bem
delineado – um lugar num cantinho, mais ao lado, mais na cozinha, um segundo
lugar. Uma afronta ao Estado Brasileiro, que teve uma política oficial de branqueamento de seu povo,
focando na miscigenação e no estabelecimento de uma população morena. Negra
não. Esta coisa ruim tinha que ser apagada.
Foto: Fernando Oliveira - 2013 |
Aceitar-se é uma afronta a um Estado cuja
polícia federal exige que se prenda os cabelos para ter direito a tirar umdocumento. Afronta a um Estado que mata majoritariamente negros.
Afronta a um Estado cujos cargos de chefia são ocupados em sua esmagadora maioria por homens brancos,
que ganham 36% mais que os homens negros e 47,8% mais que as mulheres negras. Eu
nasci pra afrontar esse Estado, pois nascer e viver sob esse Estado é uma
afronta.
RACISMO SEM FIM
Como esperar que uma criança não reproduza o
racismo ou se acostume a sofrê-lo se ela não reconhece ao seu redor negros em
posição que não seja subalterna? Como isso é possível sem que sequer haja bonecas negras pra brincar,
bonecas com sua cor, seu cabelo, sua boca e nariz, sua identidade e que mostrem
à criança que ela é bela e merece ser copiada?
Como ser negro pode ser algo bom, não
depreciativo, se pessoas da sua cor sequer aparecem no cinema, se não têm
representatividade? Quantos negros protagonizam novelas que se passam no Leblon, são
ricos, patrões, tem casas bonitas na beira do mar (protagonistas de senzala, em
novelas de época não contam)? Mulheres negras no cinema praticamente não existem, mesmo que nós
sejamos 52% da população feminina do país.
NÃO PASSARÃO!
Nós, mulheres e homens negros, construímos
este e outros países. Carregamos o Brasil nas costas ainda hoje, mesmo ganhando
bem menos pra isso e morrendo mais cedo e em maior número. Mas aprendemos a
resistir e, a cada dia, aprendemos a peitar aqueles que acham que aqui não é
nosso lugar. Nós vamos lutar para viver mais e melhor e vamos ensinar nossos
filhos que nosso cabelo, nosso nariz, nossa pele são as características da
liberdade e da resistência e que temos, sim, direito a um lugar ao sol.
Cabral: Um exemplo óbvio de racismo estrutural brasileiro |
Nós,
mulheres negras, vamos continuar procriando, mesmo que governadores brancos nos chamem de “parideiras demarginais”. Nós vamos afrontar este Estado e mostrar que
nosso lugar não é na cozinha.
(O
título do texto é uma alusão à música Cabelo Pixaim, de Jorge Aragão.)